Ao temperar com gotas de vinagre uma salada de alface, quase ninguém se dá conta de que faz um prato milenar. Mas, antes que se tornasse um ingrediente essencial para ressaltar o sabor dos alimentos, o vinagre foi conhecido por suas finalidades terapêuticas e também pelo poderoso uso como conservante de carnes e peixes, entre outros alimentos.
A receita da tal saladinha, tão simples quanto estupenda, uma vez que nunca mais saiu da mesa ocidental, está descrita no "Tratado sobre os Efeitos dos Gêneros Alimentícios", do árabe Simeão Seth, súmula mensal bizantina de dietas datada do século XI. Vem dessa época o costume de comer alface temperada com vinagre durante o verão, com resultados benéficos ao estômago, como indicam Jean-Louis Flandrin e Massimo Montanari no livro "História da Alimentação".
A existência do vinagre, porém, é mais antiga. Confunde-se com a história do vinho. Vinagre deriva do latim "vinum acre", ou vinho ácido, e tem a mesma raiz na maioria das línguas. Uma exceção é a italiana, que o traduz por aceto balsamico, nome cuja matriz é o ácido acético, outra denominação de vinagre.
Apesar do uso e difusão do tempero a partir da vinha, ele pode ser obtido de outras frutas, tubérculos, cereais e aguardente. "O primeiro vinagre de que se tem notícia era feito de tâmaras no Oriente Médio", diz Agustí Torelló, produtor de uma das cavas mais refinadas da Espanha e de um vinagre da mesma bebida. Secularmente, na Ásia, chineses e japoneses são adeptos do vinagre de arroz.
Outra das mais antigas referências que se tem sobre o vinagre de vinho vem de Hipócrates e data do século 5 a .C. O patrono da medicina no Ocidente proclamava as qualidades medicinais do líquido derivado do vinho na Grécia Antiga.
Nesse período, também, os camponeses comercializavam os vinhos tintos que produziam nas cidades. Reservavam para o cotidiano um vinagre diluído em água, como apontam os autores de "História da Alimentação".
Em Roma, um dos maiores fãs do ácido acético era Apicius, o primeiro dos gastrônomos. Esse amante da boa mesa legou 468 receitas compiladas em sua obra máxima, o livro "De Re Coquinaria".
O romano destacou dez ingredientes básicos na preparação de um prato. Não podia faltar vinagre, que aparece na sexta colocação. No refinamento culinário de Apicius, fica clara a preferência pela combinações de sabores salgados e doces, assim como a mistura de vinagre com mel evidencia um paladar para o agridoce.
Há pouca referências bíblicas sobre o vinagre. A mais importantes delas vigora como um erro histórico. Ao ser crucificado, Jesus pede água aos romanos. Ainda que odiassem o filho de Deus, não foi uma maldade, como se tornou lugar comum, oferecer a Ele um pano embebido em vinagre. A posca, mistura de vinagre e água, era a bebida das tropas de Roma. Em verdade, os centuriões estavam fazendo caridade.
Não foram os romanos, porém, os disseminadores do vinagre. Durante o longo período em que vigorou o Império Bizantino, do fim da Antiguidade até a queda de Constantinopla (1453), os árabes difundiram o uso do ácido acético por toda a bacia mediterrânea.
Mestres na arte de temperar alimentos, sempre fizeram amplo uso do vinagre em suas receitas, em especial as marinadas de carne. Até hoje é presença marcante nessa culinária. Os judeus também eram adeptos dos sabores ácidos proporcionados pelo vinagre, só que mais discretos dos que os árabes, como mostram os livros sefardins.
Na Idade Média, os gostos ácidos dominavam as cozinhas européias. Para ter uma idéia da preferência de receitas com vinagre na França, 70% do mais antigo manuscrito do "Viandier", best seller da culinária francesa medieval, incluía o toque ácido.
Entre as preparações incluídas no livro estão os pombos com açúcar e vinagre. "De acordo com Guillaume Tirel, cozinheiro de Charles V de França e compilador em 1375 do livro de culinária ‘Le Viandier’ de Taillevant, o molho cameline de vinagre e canela foi feito como segue: gengibre moído, abundância da canela, cravos-da-índia, cardamomo, macis, pimenta longa, se desejar; a seguir, esprema o pão umedecido no vinagre e misture tudo junto e salgue a gosto." Tal receita ganhou a posteridade.
Entre os séculos XIV e XVI, a canela se torna o tempero do Oriente na cozinha européia, mas nunca é usada sozinha.
Responsável por sabores marcantes, via-se associada a conservantes para carnes e peixes, essencialmente o sal, o vinagre e o azeite. O vinagre, porém, não tinha valores gastronômicos ou dietéticos.
Funcionava como um moderador frio dos efeitos abrasantes das especiarias. Durante a Plena e a Baixa Idade Média, os vinagre era usado preferencialmente para temperar não as carnes de açougue, mas as de caça, consideradas mais indigestas. Acreditava-se que era necessária uma ação ácida mais intensa. Deriva daí a idéia da vinha d’alhos.
Mesmo com um uso tão antigo e tão freqüente, a princípio o vinagre era considerado uma alteração natural do vinho. O século VIII conheceu a purificação do vinagre através de um processo de destilação elaborado por Geber. Este é considerado o primeiro tratado sobre a elaboração de vinagre.
O vinagre é vinho exposto ao oxigênio ou oxidado. Mais precisamente, provém de uma dupla fermentação: a fermentação alcoólica ou dos açúcares transformados em álcool e a fermentação acética ou o álcool transformado em ácido acético sob a ação do oxigênio e da bactéria Acetobacter. É essa bactéria que fixa o oxigênio e o transforma em ácido. Apesar de ser tão antigo, o processo natural só foi estabelecido em 1865 por Pasteur. "Diferentemente do vinho, o vinagre, já oxidado, não tem prazo de validade. Se bem conservado, pode ser usado por um tempo indefinido", garante Torelló.
De uma maneira geral, os vinagres artesanais são feitos dentro de uma barrica-mãe. Ela não deve ter mais que dois terços do volume ocupado.
No interior da barrica, sobre o líquido exposto ao oxigênio e à ação da Acetobacter, forma-se um véu. À medida que vai se retirando lentamente o ácido acético, é preciso realimentar a barrica com a mesma quantidade de vinho. Este é o processo mais tradicional de fabricação de vinagre.
Nos produtos industriais, injeta-se diretamente o oxigênio no vinho. "Como no vinagre industrial se injeta água, ele acaba perdendo muito do aroma e do sabor", explica Torelló.
Entre os vinagres finos, o mais célebre é o aceto balsamico de Modena. Elaborado na região da Emilia-Romagna, no centro-norte da Itália, tem devotos ardorosos, como o tenor Luciano Pavarotti. Antes dele, outro admirador foi o compositor Gioacchino Rossini (1792-1868), que passou à história não somente como autor de "O Barbeiro de Sevilha", mas como gourmet e glutão.
De cor marrom escura e brilhante, o aceto é repleto de nuances. Desprende um aroma ácido mas não agressivo, com equilibrado sabor agridoce. Sua origem também é medicinal, daí se ter agregado ao termo "aceto" o adjetivo "balsamico", que vem de bálsamo ou remédio. De produção antiga - é citado pelo poeta Virgílio, nascido em 70 a .C. e autor dos versos da "Eneida" -, o aceto só foi codificado em 1860 pelo médico Francesco Aggazzotti. A partir daí, adotou-se uma única fórmula para a fabricação. O mosto de uva cozido é a matéria-prima do Aceto Basalmico Tradizionale di Modena.
Sem ferver, permanece no fogo entre 24 e 48 horas. Segue para fermentar naturalmente por ação das próprias moléculas de açúcar e do Acetobacter. A etapa seguinte é um demorado processo de envelhecimento em diferentes barricas de madeira. As barricas são agrupadas em cinco ou sete unidades. A barrica-mãe tem capacidade para cerca de 220 litros .
É dela que vai sendo retirado o líquido para alimentar outros pequenos barris, feitos em tamanhos e com madeiras diferentes: carvalho ( 60 litros ), castanha ( 50 litros ), cereja (40), freixo (30), amoreira (20). O estágio final é em garrafões de cerâmica com boca protegida por tecido de linho.
Mas não se pense que este é o vinagre encontrado nas prateleiras de supermercados e empórios finos brasileiros. São sucedâneos feitos em larga escala e muito longe de ter a mesma classe.
Somente o autêntico Aceto Balsamico di Modena pode ostentar a denominação "tradizionale". Custa verdadeira fortuna e é vendido em frascos de 500 mililitros, no caso dos envelhecidos entre dois ou três anos, ou vidrinhos de 250 mililitros, com cinco anos. Apesar da qualidade do vinagre italiano, ele só ficou conhecido mundialmente a partir do final da década de 70, como indica Mesha Halm em "The Balsamic Vinegar Cookbook". Foi somente a partir dessa época que se incrementaram as vendas. Antes disso, era um produto familiar para consumo interno. A versão industrializada começou a ser importada no Brasil há uma década e já caiu no gosto da classe média.
Na França, a mais tradicional produção de vinagres está sediada em Orleans e descende de uma corporação de artesãos surgida em 1394. Naquela região se transportavam os vinhos produzidos no vale do Loire, originários de Tour e Angers.
Como eram viagens lentas e muito longas, parte da carga acabava se estragando, ou melhor, se oxidando. De um bom vinho, se transformava num vinagre excelente. Afinal, como diz Alan Davidson em "The Oxford Companion to Food", vinho azedo não é um bom vinagre. "Um vinagre refinado é feito por um processo controlado." No século XVIII, 300 vinagreiros já exportavam sua produção para a Holanda, América e Ásia. Hoje, a pátria de Napoleão produz vinagres varietais das uvas sauvignon blanc, cabernet sauvignon e merlot. Também há uma versão de Champagne. Outro produto conhecido é o vinagre de sidra.
Considerado um tesouro andaluz, o vinagre de Jerez é um dos orgulhos culinários de Espanha. Mas foi somente a partir de 1995 que houve uma preocupação em estabelecer a denominação de origem. A autenticidade e a qualidade são garantidas pelo Conselho Regulador da Denominação de Origem Jerez-Xerès-Sherry e Manzanilla de Sanlúcar. Esse vinagre é produzido em um sistema de até 15 barricas, de no máximo mil litros, empilhadas na forma de uma pirâmide.
Na base, ficam as chamadas soleiras, de onde sai o vinagre pronto. Sobre ela se distribuem as criadeiras, ou seja, barricas-mães por onde se distribui o vinagre em seus vários estágios de envelhecimento. Todas são ocupadas por um terço de ar, o que permite a formação do véu sobre o líquido. Um vinagre de Jerez tem de contar com um envelhecimento mínimo de seis meses. O reserva tem no mínimo dois anos de barricas. Entre os tops, há os que exibem 50 anos no rótulo, como o Mas Portell Vinagre de Jerez Reserva, cuja acidez máxima atinge 8º. Mais do que Jerez, a Espanha produz vinagres extraordinários feitos com vinhos Chardonnay, Cabernet Sauvignon e Trempranillo, além de Cava, este ideal para pescados, e sidra, fermentado de maçã.
Fonte : www.herbario.com.br